Feridos ou desabrigados acabam mais vulneráveis a transtornos de saúde mental; protocolo de primeiros cuidados é oferecido a pessoas expostas à situações de estresse, mas os desastres também exigem acompanhamento especializado e interdisciplinar
A tragédia provocada pelas chuvas e enchentes que afetaram ou destruíram mais de 460 cidades do Rio Grande do Sul causaram danos que podem ser mensurados além das perdas humanas (163 mortos, 806 feridos e 65 desaparecidos até a manhã do dia 24, segundo a Defesa Civil gaúcha) e das materiais, estimadas em mais de R$ 10 bilhões, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM).
Um ponto de atenção mais recorrente é o cuidado com a saúde mental dos sobreviventes, desabrigados e desalojados, que correm o risco de desenvolver traumas e transtornos psicológicos, incluindo até mesmo o medo do barulho de chuvas e trovoadas. E nem mesmo as pessoas que atuam na linha de frente dos resgates e do acolhimento, seja como voluntários ou profissionais, estão imunes às sensações de tristeza, esgotamento e impotência.
Segundo a psicóloga Marília Meneghetti Bruhn, professora do curso de Psicologia da Universidade Tiradentes (Unit), as principais demandas de saúde mental que surgem depois de desastres ou situações de emergência implicam em conseguir ressignificar processos de intensas perdas socioafetivas, lutos, violação de direitos humanos e aniquilamento de recursos materiais.
Uma das intervenções recomendadas para o atendimento imediato das vítimas de desastres ou tragédias estão nos chamados Primeiros Cuidados Psicológicos (PCP), um protocolo elaborado pela Organização Mundial da Saúde, que teve uma cartilha lançada recentemente pelo Ministério da Saúde e pelo Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRP/RS). Em geral, eles são oferecidos a pessoas em estresse agudo, logo após terem sido expostas a um evento traumático.
Marília explica que esses cuidados são oferecidos logo após o desastre para pessoas afetadas, podendo ser aplicados por diversos profissionais, inclusive que não sejam da área da saúde. “Os PCPs se caracterizam principalmente por uma escuta atenta e acolhedora, sem pressionar a pessoa a contar o que aconteceu e em que ordem os eventos ocorreram. A escuta deve ser feita sem julgamentos e sem invalidações de como a pessoa está se sentindo”, explica Marília, que tem experiência no atendimento a imigrantes haitianos que enfrentaram desastres ambientais e na formação de profissionais de saúde que atuaram em tragédias como o incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria (RS), em janeiro de 2013.
Ela explica também que os PCPs e outras modalidades de atendimento após emergências e desastres costumam ocorrer em campo, ou seja, nas comunidades em que as pessoas vivem, ou em lugares em que as pessoas afetadas são atendidas, como centros de saúde, abrigos ou assentamentos, escolas e áreas de distribuição de alimentos ou outros tipos de auxílio. “Os atendimentos nesse contexto são bem diferentes dos que ocorrem individualmente em consultórios porque nem sempre é possível garantir um ambiente isolado e com hora marcada. A recomendação é que os PCPs possam ser aplicados em um local que garante certa privacidade e as informações contadas para o profissional devem ser mantidas em sigilo. Outro cuidado importante é que crianças e adolescentes devem, preferencialmente, ser escutados na companhia de algum responsável”, acrescenta.
Outros cuidados
Além dos primeiros cuidados, existem outras ações de cuidado em saúde mental que são necessárias tanto a curto quanto a médio e longo prazo, e que são operacionalizadas por equipes multiprofissionais e interdisciplinares, que componham as políticas públicas de atenção à saúde mental. Meneghetti ressalta que a ação do profissional de Psicologia deve ser articulada com as equipes, com a comunidade e com ações integrais para lidar com as perdas materiais e imateriais.
“É fundamental que o psicólogo não aja individualmente, mas busque se integrar a trabalhos coordenados coletivamente. Também é essencial que apenas profissionais de Psicologia que tenham conhecimento e habilitação na área de emergências para assumir responsabilidades profissionais em desastres”, alerta a professora da Unit, frisando que a presença destas equipes contribuem para o atendimento em uma perspectiva biopsicossocial, que colabora para que haja integralidade - consideração de todas as necessidades - do usuário do serviço de saúde.
“Nesse momento inicial, também é de extrema importância fazer a avaliação de quais pessoas apresentam quadros graves de sofrimento mental e realizar o adequado encaminhamento para cuidados especializados de saúde. A maioria da população atingida apresentará sofrimento intenso devido ao desastre, mas conseguirá encontrar suporte em estratégias de cuidado comunitário”, detalha Marília, acrescentando que existem poucos casos com necessidade de escuta especializada do psicólogo e, até mesmo, de intervenção psiquiátrica e farmacológica específica.
Outras medidas passam pela garantia imediata das necessidades básicas das pessoas atingidas, como água, alimentos e abrigo seguro para as vítimas, bem como a garantia de seus direitos básicos.
Profissionais preparados?
A professora, que é mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), destaca que o momento atual chama a atenção para a necessidade de tratar o tema na formação dos futuros psicólogos e dos novos profissionais de saúde. As disciplinas dos cursos de graduação abordam tópicos relacionados a acolhimento psicológico, intervenções comunitárias, políticas públicas e direitos humanos. No entanto, de acordo com a professora, não costumam haver disciplinas e estágios que ensinem sobre a atuação do profissional de saúde na gestão de desastres e emergências.
“Em muitos desastres, os profissionais que atuam como voluntários não têm condições de oferecer os atendimentos emergenciais por falta de formação adequada”, diz Marília, ao contar que, nas últimas semanas, acompanhou vários anúncios de psicólogos oferecendo práticas que são proibidas pelo Conselho Federal de Psicologia. “A enchente no Rio Grande do Sul é um lembrete para professores e alunos se implicarem em um formação em saúde mental que capacite profissionais de saúde para atendimentos no contexto de desastres e emergências. Antes que outra emergência aconteça, precisamos nos preparar para saber o que devemos e o que não devemos fazer em situações de desastres”, assevera Marília.
Autor: Gabriel Damásio
Fonte: Asscom Unit